Umas esmolinhas para um turista cadeirante
Já rolou comigo mais de uma vez. São peculiaridades que habitam alguns olhos de quem vê um deficiente
Quando fiquei paraplégico, em janeiro de 2000, aos 17 anos, as minorias tinham uma voz ainda menos ressoante. Não se falava em inclusão, feminismo, sufragismo, resistência, direitos iguais… Claro, a luta de agora segue difícil, essa governança… Mas até que há mais consciência. Se a gente se organizar, podemos desorganizar, como pregou Chico Science.
À época, falava-se que as células-tronco iriam deslanchar logo, que a medicina estava adiantada, algo que não se provou até agora.
Não faz tanto tempo, mas num primeiro momento achei que tentaria a sorte na vida nos semáforos, que não teria grandes oportunidades profissionais, algo que depois se mostrou o contrário graças ao suporte familiar, à correria. E a um pouquinho de sorte, sem ela não se chupa nem um Chicabon, diria Nelson Rodrigues.
O fato é que fiz e faço coisas realizadoras que talvez não as atingisse se não fosse acometido por esse tiro de um policial militar paulista. Nesse pacote, claro, tenho de lidar com peculiaridades que habitam alguns olhos de quem vê um cadeirante.
Como certa vez em Belo Horizonte, no alto da Avenida Afonso Pena, quase na Praça do Papa. Enquanto aguardo a minha vez para ser atendido numa banca de jornal – sim, adoro o ritual de ler no papel e sempre o adorarei –, surge um tipo a me abordar. Mamado, é verdade, ao me ver na cadeira de rodas, decide me oferecer umas moedas. Na hora, a gente se pergunta se isso está rolando mesmo. Estava. Achei graça, agradeci e disse que eu não precisava da esmolinha, não com essas palavras, na boa.
Devia ter uns R$ 1,50. Pô, nem pro cara me oferecer uns 50 conto… Com aquelas moedas não dava pra comprar nem um exemplar usado de Sabrina na banca. Ele insistia, mas, de forma amistosa, neguei.
[Muitos bêbados(as), sobretudo em festas e shows, costumam babar ovo para o fato de eu estar na cadeira de rodas, rasgam elogios, por vezes querem até se ajoelhar e beijar a minha mão… Tenho de entender, levar na boa, certo de que não mereço tais reverências. Pelo menos o ébrio de BH não fez isso.]
Passaram-se 11 anos e eu desembarcara em Halifax, no Canadá. A poucos passos do Hotel Delta, onde eu pernoitaria, o primeiro choque de realidade ao conhecer o país gigante nortista foi ver os impecáveis jardins do Grand Parade, diminuto parque com bancos coloridos e mesas com tabuleiros de xadrez cuidadosamente pintados.
Na saída, fui abordado por uma senhorinha que, ao me ver na cadeira de rodas, me parou: “Com licença, eu posso te oferecer 3 dólares?”. Isso mesmo, de esmola. Hipponguices do meu guarda-roupa à parte, até que eu não estava malvestido, tinha até câmera no pescoço. Matutei e, rapidamente, sorri e aceitei; afinal, era o Primeiro Mundo repartindo sua renda com a gente do Terceiro Mundo. É nois.
Com mais 3 dólares canadenses, comprei um pint de Guinness no Durty Nellys, pub na Argyle Street, via de muitos restaurantes e botecos descolados que se agitam à noite.
Enfim, se acontecer de novo, quem sabe dou sorte de arranjar uma graninha maior. Mas ainda sofro e sempre vou sofrer por saber que muita gente precisa de um troco pra comer ou fazer a manutenção de sua velha cadeira de rodas.
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