Há mais de 30 anos, intrépidos viajantes cruzam o mapa da África em caminhões equipados para percorrer muitos quilômetros em busca de aventura. Hoje, entretanto, a travessia é menos arriscada e ganhou recursos então inimagináveis. Os caminhões agora têm cofre, tanque de água potável, geladeira, compartimento para refeições, GPS e mais assentos. Por dentro, mais parecem ônibus que caminhões. À procura de um roteiro emocionante, escolhemos o trecho que vai da Cidade do Cabo, na África do Sul, às Victoria Falls, no Zimbábue. Em 20 dias, atravessamos a África do Sul, a Namíbia e Botsuana até chegar ao Zimbábue, num total de 5 042 quilômetros.
Pode parecer insano, mas viajar pelo continente africano nesse tipo de condução é seguro. Sem esquadros ou réguas, desbravamos uma África onde tudo estava relativamente previsto. O pacote incluía, além do transporte, guia bilíngue e assistente, utensílios de cozinha, entradas às principais atrações, barracas, colchonetes e três noites em pousadas. Ao longo do trajeto, descobrimos que era nossa missão também ajudar a carregar e descarregar o caminhão diariamente, montar, desmontar e limpar as barracas no meio do nada, preparar as refeições na fogueira e lavar e guardar os utensílios de cozinha. Isso sem contar aprender a não ficar histéricas ao viver em acampamentos, ter de acordar várias vezes antes de o galo cantar e enfrentar muitas horas de estrada todos os dias.
Acompanhadas de mais 23 pessoas de vários cantos do planeta, partimos bem cedo da Cidade do Cabo a bordo de um caminhão Mitsubishi Fuso. Por nossa conta e risco, entregamos a vida nas mãos de um guia e de um jovem assistente de cozinha. Ouvimos as primeiras regras do tour em volta de uma fogueira – o vento frio e cortante e a chuva fina faziam o prenúncio da primeira e única noite gélida na viagem. Nosso guia, Bjorn, um belga de 35 anos que havia quatro trocara o dia a dia de chef de cozinha na Bélgica por uma vida cheia de imprevistos e itinerários variados como guia da Nomad Adventures Tours, desencorajou aqueles que ainda tinham dúvida sobre seguir viagem. Mas deixou claro que íamos ser testados, fosse pela rotina de tarefas, fosse pela completa inaptidão em acampar, pela necessidade de entrosamento com o grupo, pelas condições climáticas ou pelos imprevistos constantes. Ninguém desistiu.
A Namíbia foi de uma beleza extrema. Suas cores e paisagens vastas, desérticas e exuberantes faziam valer cada estradinha pedregosa. Nas dunas de cor avermelhada em razão da grande concentração de óxido de ferro no Deserto de Sossusvlei, oásis nos alentavam, tribos nômades atravessavam nosso caminho, rajadas de vento nos confortavam do clima seco e do sol a pino. Antílopes, como os orixes, gnus e kudus, tal como a areia, estavam por toda parte. Quando a tinta negra da noite pintou o céu, nem montamos as barracas. Dormimos ao relento, contando estrelas cadentes e ouvindo os passos ligeiros de chacais (ávidos, curiosos e atraídos pelas sobras do jantar), o ruído rasteiro do vento que trazia a areia do deserto e o som abafado dos pingos de chuva que vieram amenizar o calor da noite e o terreno tão árido. No Parque Nacional de Naukluft, assistimos ao nascer do sol nas dunas mais altas do planeta. Foi fácil perder-se no tempo contemplando pássaros que brincavam de ciranda e vendo uma miríade de cores despontando no horizonte. Mas, antes do meio-dia, um sol impiedoso mostrava sua força. Sentimos o calor de 50 graus queimar nosso corpo.
Seguimos para o próximo destino: Swakopmund, a segunda maior cidade do país. Com cerca de 35 mil habitantes e localizada entre as dunas do Deserto da Namíbia e o Oceano Atlântico, Swakopmund é o local preferido para as férias dos namíbios e para quem gosta de praticar esportes de ação. Aproveitamos para desbravar as dunas com quadriciclos e ficamos em êxtase ao saltar de paraquedas sobre um cenário sem paralelo no planeta.
Em Spitzkoppe, o misterioso sítio arqueológico sagrado do povo san, os mais antigos habitantes do continente africano, realizamos nosso primeiro acampamento primitivo. Nessa vasta planície serpenteada por montanhas, foi preciso esquecer todos os resquícios de civilização. Diferentemente dos outros dias, não havia banheiro, bar, piscina ou qualquer conforto. Mas a paisagem em volta era impressionante. À noite, a surpresa foi um jantar à luz de velas servido dentro de uma caverna, uma oportunidade de voltar às nossas origens.
Ao norte da Namíbia, em Kamanjab, vivemos um dos momentos mais emocionantes: o encontro com as tribos Herero e Himba, dois dos últimos povos seminômades da África. As mulheres hereros ficam na beira da estrada em cabanas de madeira, onde passam o dia costurando bonecas de pano que imitam as peculiares e coloridas vestes da tribo, herança da colonização alemã. Já para visitar a tribo Himba é necessário obter uma autorização prévia. Ao contrário dos hereros e de outras tribos que perderam sua cultura, os himbas lutam até hoje para preservar seus costumes, como o pastoreio, que os leva a se deslocar pela fronteira entre Namíbia e Angola atrás de cursos de água. Um guia local recebe as excursões de turistas e, de oca em oca, explica alguns dos hábitos da tribo. A pele de tom avermelhado, por exemplo, é resultado de uma mistura de banha animal e pó de ocre que faz parte de um ritual diário de beleza e higiene das mulheres. Com essa mistura, elas mantêm-se limpas e protegidas do sol. Por isso, nunca tomam banho. Somente se receber um convite, o turista pode entrar na oca e observar o ritual, que inclui defumação com a resina de uma árvore muito aromática, a omuzumba. Nesse dia, nos afastamos do grupo para fazer fotos com adolescentes da tribo. Havíamos aprendido algumas palavras do dialeto horas antes e, com muitos sorrisos, gestos universais e garantindo a permissão de deixá-las passar a tal mistura de banha e ocre em nossa pele, cativamos a confiança das meninas. Em troca, elas nos convidaram para conhecer suas ocas e presenciar o ritual de higiene, além de nos mostrar danças típicas, que registramos com nossas câmeras e, para sempre, na memória.
Na memória também guardamos um encontro fortuito com leões, elefantes, rinocerontes, búfalos e leopardos, os famosos big five, os cinco animais mais difíceis de ser caçados pelo homem. O Parque Nacional Etosha, um dos melhores e mais importantes safáris do país, é o lar de uma incrível variedade da fauna africana: são 114 espécies de mamíferos, 340 de pássaros, 110 de répteis, 16 de anfíbios e apenas uma de peixe. Durante dois dias, fizemos quatro safáris, sempre ao nascer do sol e antes de ele se pôr, quando os animais estão mais ativos. Vimos girafas, zebras, elefantes, antílopes e gazelas embaralharem suas estampas e cores nos mais diferentes cenários. E ainda contamos com um brinde. O alojamento em Okakuejo construiu um muro de pedra em volta de um grande bebedouro, onde é possível observar os animais a qualquer hora do dia. À noite, bichos de hábitos noturnos, como o raro rinoceronte-negro, surgem lentamente. E os leões ficam à espreita, aguardando o momento de atacar as vítimas que ali se refrescam. Mas nos dias em que estivemos lá os leões não tiveram tanta sorte.
Se por um lado a natureza do continente encheu nossos olhos, por outro o extermínio impiedoso de africanos vítimas da AIDS escancarava uma realidade extrema. Em Rundu, na fronteira entre Namíbia e Angola, pagamos para assistir a uma apresentação de dança típica da tribo Ovambo. Foi impossível não notar que uma profunda tristeza pairava no ar: uma dançarina do grupo havia morrido de AIDS havia pouco tempo.
Deixamos as estradinhas desérticas da Namíbia para entrar no país que possui os diamantes mais caros do mundo: Botsuana, que detém outras duas joias famosas, o Delta do Okavango e o Parque Nacional Chobe, considerado um dos três melhores locais do mundo para safáris. No Okavango, deixamos o caminhão para trás. Durante três dias, nossos meios de transporte foram barcos motorizados e mokoros, canoas típicas feitas de madeira ou fibra. Nos imensos deltas de lagoas, labirintos de canais e ilhas, observamos crocodilos tomando sol, famílias de hipopótamos brincando sob as águas e pássaros de todas as cores, formas e tamanhos. No segundo acampamento selvagem, só pudemos levar uma pequena mochila, uma garrafa de água de 5 litros, o saco de dormir e muita coragem para passar a noite em uma ilha habitada por milhares de animais selvagens. Pegadas frescas revelavam que eles estavam por perto. Numa breve caminhada, encontramos os donos do lugar: elefantes, búfalos e hipopótamos. Para ir durante a madrugada até o buraco cavado no meio do mato que servia de latrina, éramos obrigados a acordar o companheiro de barraca. Se algo acontecesse, pelo menos um conseguiria fugir para avisar.
O ponto final da viagem foi a cidade de Victoria Falls, no Zimbábue. Nos dois últimos dias, visitamos as famosas cataratas e fizemos um rafting radical nas águas do poderoso Rio Zambezi. Caminhar pela cidade, porém, nos trouxe de volta à realidade de um país com a maior taxa de inflação do mundo. No mercado local, tentamos trocar nossos dólares por dólares do Zimbábue para comprar suvenires. Mas eles não queriam nosso dinheiro, e sim nossa roupa ou qualquer alimento. Voltamos para a pousada e juntamos tudo que tínhamos: tênis, calças, blusas, walkmen, pilhas, fitas cassete, latas de atum, feijão, milho, e fizemos o escambo. Viajar pela África é, acima de tudo, uma experiência antropológica. Mas, para absorver esse trajeto, é preciso deixar para trás várias concepções e amarras do mundo moderno. A recompensa é saciar a alma e as retinas com registros de uma África única e memorável.
Esta reportagem também foi publicada na edição especial Dubai e Destinos Exóticos
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