O escritor e as cidades
O catalão ENRIQUE VILA-MATAS fala de Dublin, onde se passa <em>Dublinesca</em>, seu último livro, e outros destinos literários do mundo
“A verdadeira aventura é não saber a que te aventuras”, diz o catalão Enrique Vila-Matas. É com esse espírito que o escritor deixa Barcelona, onde vive, e viaja pelo mundo, sem jamais ter um guia turístico como companhia. A Dublin, cenário de seu mais recente romance, Dublinesca, o que o levou foi menos a aventura e mais a paixão por autores e livros – enredo constante de sua obra. Grande parte de Dublinesca se passa na capital da Irlanda, pois é lá, em um único dia, 16 de junho de 1904, que se desenrola a trama de um dos romances mais aclamados do século 20, Ulisses, do dublinense James Joyce (1882-1941). Joyce, Ulisses e Dublin hoje formam um todo quase indistinto, tanto que o Bloomsday – o 16 de junho em que Leopold Bloom, o protagonista de Ulisses, vive seu périplo – é uma das grandes datas irlandesas, motivo de júbilo cívico. O Bloomsday e os ecos de Joyce fazem de Dublin uma das capitais literárias do mundo. Na cidade, você pode a qualquer momento seguir os passos de Leopold (e de Joyce), em passeios como os da Dublin Tour Company. A seguir, vila-matas fala com exclusividade à VT sobre Dublin e outras viagens.
Chegando a Dublin
Aterrissei em uma véspera do Bloomsday em Dublin. Dois amigos foram me buscar no aeroporto. Eles me colocaram em um carro e ficamos dando voltas pela Baía de Dublin. Seguimos até Howth, ao norte, um pequeno porto de pescadores que tem uma luz fantástica e uma beleza gélida. Depois seguimos para o outro extremo, em Dalkey, ao sul, em que transcorre o segundo capítulo de Ulisses. Então fomos a um pub chamado Finnegan’s of Dalkey (1 Sorrento Road, www.finnegans.ie). Decidimos que aquele lugar de nome joyceano seria o cenário, no dia seguinte, do ato de fundação da ordem dos Finnegans, no qual eu e mais quatro companheiros somos cavaleiros. O primeiro capítulo de Ulisses se passa na torre do Martelo, de sandycove, perto dali. Vimos cenários melancólicos e maravilhosos.
Biblioteca do Trinity College, que parece ter “livros pintados nas paredes” – Foto: J-C.&D. Pratt/AFP
A biblioteca
Dublin mudou muito pouco – praticamente tudo o que Joyce viu e narrou em Ulisses continua lá. Suponho que ele se surpreenderia com a animação da cidade, cheia de jovens. Recomendo muito conhecer a long Room da Biblioteca do Trinity College, que é a mais borgiana das bibliotecas que eu já vi, no sentido de conter todos os livros do mundo. As prateleiras são incrivelmente altas e, por isso, tem-se a sensação de que os livros foram pintados nas paredes.
No Bloomsday
No dia 16 pela manhã, data do Bloomsday, presenciamos uma leitura pública de Ulisses em frente ao Irish Film Institute (6 Eustace Street, Temple Bar, www.irishfilm.ie). Ali é comum encontrar dublinenses disfarçados de leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus, personagens de Ulisses. De lá o roteiro segue até o cemitério Glasnevin. Na chegada, deparamos com o imenso portão que está descrito no capítulo 6 do livro. Passamos por tumbas góticas, vimos corvos. Na saída, encostado ao cemitério, paramos no pub Kavanagh’s (1 Prospect Square, 353/1-830-7978), conhecido popularmente como The Gravediggers (os Coveiros). Esse pub de 1904 não é mencionado em Ulisses. (Nota da VT: ninguém é de ferro.)
Bram Stoker
O clima do cemitério me faz lembrar os livros de Bram Stoker, autor de Drácula, que eu adorava na infância. Quando descobri que o escritor também era de Dublin, fui em busca da casa onde viveu. Tinha visto na internet que ela ficava no número 30 da Kildare Street, perto do St. Stephen’s Green, um dos parques mais bonitos da cidade. A julgar pelo que li, deveria haver na fachada uma daquelas placas que dizem “fulano viveu aqui”. Mas não. Só havia a indicação de que ali funcionava uma clínica de cirurgia plástica. Pensei que alguém poderia ter roubado a placa. Ou os donos da clínica a retiraram temendo que ela inibisse a doação de sangue.
Escritor Enrique Vila-Matas – Foto: Basso Cannarsa/ Divulgação
Cisnes contra a guerra
Uma curiosidade: a casa em que viveu Bram Stoker fica quase ao lado do hotel Shelbourne (27 St Stephen’s Green, www.marriott.co.uk/holidays/dublin-hotels). Além de hospedar nomes como John Kennedy, Maureen O’Hara e John Wayne, é também o lugar onde foi assinada a independência da Irlanda. Durante a Revolta da Páscoa, em 1916, um dos principais levantes republicanos contra o domínio britânico, o hotel foi usado pelos ingleses como quartel-general para atacar as posições rebeldes. Os dois lados em disputa faziam uma trégua, de uma hora por dia, para alimentar os cisnes que viviam em um lago no St. Stephen’s Green.
A arte de ser local
Quando chego a uma cidade que não conheço, ajo como se tivesse morado ali a vida inteira e não sinto vontade de ver nada especificamente. É diferente do turista, que tem a tendência de buscar o que ele já sabe que existe, quando a verdadeira aventura é não saber a que te aventuras. O turista invariavelmente acaba fazendo as mesmas fotos que ele já viu antes de viajar.
São Paulo
Meus personagens só se movem por territórios muito urbanos, como Nova York, Dublin, Paris, Chicago, Lisboa, São Paulo, México e Buenos Aires. Eles nunca vão a cidades a que eu não vou – não iriam muito além da Turquia, portanto. Assim, não duvido que no futuro passeiem por São Paulo. Por alguma razão, gostei muito dela. Talvez pela fama de não ser bonita. Gosto de cidades que não são narcisistas, em que os moradores não ficam o tempo todo dizendo que vivem em um lugar bonito. O contrário de Sevilla, por exemplo, ou de Paris e Londres, que sempre estão a se afirmar. Acho que aí está o segredo: não chamar atenção.
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