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O melhor da culinária da Catalunha, Andaluzia e País Basco

Roteiros gastronômicos pelos extremos leste, norte e sul da Espanha para devorar o que há de único em sua cozinha de vanguarda

Por Adriana Setti
28 ago 2018, 18h27

Muitas esferas líquidas rolaram desde que o chef catalão Ferran Adrià extrapolou os limites da cozinha molecular à frente do elBulli. Quase sete anos após o fechamento do restaurante mais revolucionário de todos os tempos, o caldo de plâncton elaborado pelo andaluz Ángel León (recém-condecorado com a terceira estrela no Michelin) brilha no escuro e deixa claro que a Espanha continua à frente da vanguarda gastronômica.

Ao mesmo tempo que dita tendência, o país cultiva seus rituais culinários e as delícias de toda la vida. Banhado pelo Atlântico e o Mediterrâneo, e com cordeiros e porcos de patas pretas vivendo felizes em seu interior, o território espanhol tem ingredientes que se bastam – a essência da cozinha mediterrânea, que dispensa molhos e artifícios. Entre a simplicidade de um naco de jamón ibérico e a fome de inovação dos chefs de ponta, percorrer a Catalunha, o País Basco e a Andaluzia para comer e beber é um ato de amor ao seu paladar.

Barcelona dos Adrià

Restaurante Patka
O Pakta, de Albert Adrià, faz cozinha peruana em Barcelona (maisant ludovic/ alamy/ latinstock/Wikimedia Commons)

Enquanto Ferran Adrià se dedica à pesquisa em sua fundação, o irmão mais novo do inventor das azeitonas líquidas e dos amendoins miméticos comanda um pequeno império gastronômico em Barcelona. À frente dos seis restaurantes do projeto elBarri, Albert Adrià transita da alta cozinha peruana (Pakta) à mexicana (Hoja Santa e Niño Viejo), passando pelas tapas inventivas (Tickets) e os petiscos que embalam o vermute (Bodega 1900), tradição etílica que voltou com força nos último anos. Mas é no Enigma, sua mais recente empreitada, que o caçula mostra que o espírito revolucionário do elBulli – onde era responsável pelas sobremesas – ainda corre em suas veias.

Apenas 24 comensais se deslocam por cinco ambientes, enquanto devoram mais de 40 bocados entre snacks, pratos, pratinhos, sobremesas e petit fours.

Tudo isso embalado por coquetéis altamente complexos (vai um mae thae em forma de bombom?). Entrar no restaurante digitando uma senha na porta não é a única excentricidade que faz jus ao nome Enigma. Pontilhado de móveis de resina translúcida, o restaurante de 500 metros quadrados é compartimentado por lâminas de vidro que lembram cataratas congeladas, posicionadas sob uma malha metálica de formas insólitas e cores mutantes.

Restaurante Disfrutar, Espanha
Equipe do restaurante Disfrutar, em concentração total (Adria Goula Sarda/Divulgação)
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Em algumas escalas da viagem de quase quatro horas, os clientes comem em pé sobre a aquarela gigante em forma de piso, que demandou a criação de uma nova técnica de impressão digital em pedra sinterizada. O cenário, para George Lucas nenhum botar defeito, é assinado pelo escritório barcelonês RCR, vencedor do Prêmio Pritzker (o Oscar da arquitetura) em 2017, que também desenhou os uniformes futuristas e os utensílios do staff. Diante do custo de € 2 milhões, os € 220 pagos pelo menu degustação parecem fazer sentido.

Assim como Albert, outros chefes que desempenharam papel fundamental em elBulli comandam a cena gastronômica de Barcelona. O trio, formado por Eduardo Xatruch, Mateu Casañas e Oriol Castro, acaba de faturar a segunda estrela no Michelin pelo Disfrutar, que serve uma versão atualizada e simplificada do estilo “bulliniano”. Celebridade internacional, Carles Abellán foi um dos primeiros a embarcar na onda dos gastrobares e, recentemente, inaugurou o mais incrementado da série: La Barra, dedicado à “cozinha do mar”.

Restaurante Ten's
Geral do ambiente do Ten’s (Marco Pastori/Divulgação)

Jeito de bar, comida séria e preço acessível também são os ingredientes do Dos Pebrots, nova empreitada de Albert Raurich, consagrado pelo Dos Palillos, que completa dez anos em 2018. Para celebrar, abrirá sua cozinha a outros chefs que passaram pelo elBulli, entre eles os irmãos Adrià, o trio do Disfrutar e o todo-poderoso Joan Roca, cujo El Celler de Can Roca, em Girona (a 100 quilômetros de Barcelona), segue entre os três melhores restaurantes do mundo no ranking da revista Restaurant, que dita quem é quem atualmente.

Na edição 2018 do Guia Michelin, Barcelona somou mais um restaurante com três estrelas a seu portfólio – até então, o único era o Lasarte, que teve cotação máxima em 2017. O feito é do guapetón Jordi Cruz, cujos olhos azuis dividem a atenção entre os fogões do ABaC e o comando da versão espanhola do programa MasterChef.

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Tapas do Restaurante Ten's
Tapas do Ten’s, onde dá para provar as delícias de Jordi Cruz (Divulgação/Divulgação)

Para provar a sua cozinha sem gastar uma fortuna, aposte nas tapas do Ten’s ou nas receitas clássicas do novo Atempo, bistrô inspirado no cinema noir dos anos 1920.

Gigantes e miniaturas no País Basco

Restaurante A Fuego Negro
Sobremesa do moderninho A Fuego Negro, em San Sabástian (Divulgação/Divulgação)

A poucos quilômetros da fronteira com a França, San Sebastián disputa com Barcelona o papel de capital espanhola da comilança. Além de acolher o Gastronomika, um dos congressos mais importantes do circuito europeu, a cidade também abriga uma das escolas de cozinha mais renomadas do mundo, o Basque Culinary Center. O que interessa aos bons de garfo, no entanto, são os seus mais de 200 bares de pintxos, as tapas em estilo basco.

Muna-se de espírito de gladiador para abrir espaço em bastiões como La Cuchara de San Telmo, Bodega Donostiarra, Ganbara e Borda Berri, e descubra o maravilhoso mundo da alta cozinha em miniatura. Dá pra improvisar, também, entrando em todo lugar lotado, de preferência com uma vasta quantidade de papel jogado no chão, estranha tradição local que mede o sucesso de cada estabelecimento. Para comer sentado, limpinho e com reserva, coisa rara, aposte no menu degustação do modernex A Fuego Negro.

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Restaurante Mugaritz, Espanha
O venerado, e também basco, Mugaritz (Divulgação/Oscar Oliva/Divulgação)

Nem só de pintxos vive o País Basco, por supuesto. A vanguarda da alta cozinha espanhola nasceu aqui, pelas mãos do chef Juan Mari Arzak. Aos 75 anos, ele continua dando expediente na casa que leva seu sobrenome, hoje comandada por sua filha Elena. Não é por acaso, portanto, que quatro restaurantes bascos estejam entre os 50 melhores do mundo, na lista da Restaurant.

Entre eles, o mais bem posicionado na edição de 2017, em sexto lugar, foi o Etxebarri. No minúsculo vilarejo de Atxondo, é o esconderijo do chef Bittor Arginzoniz, mago da grelha que, desde 1990, se dedica a “extrair o perfume das brasas e acariciar os ingredientes com fogo, cuja anatomia conhece à perfeição”, segundo o chef Andoni Luis Aduriz, do venerado e também basco Mugaritz. Tímido (“só falo com o fogo”), ele foge do convencional e manda para a churrasqueira produtos como angulas, percebes, ostras, caviar e ovos.

Restaurante Etxebarri, Espanha
(Juanma Aparicio/alamy/latinstock/Wikimedia Commons)

Aos que não podem esperar quatro meses para conseguir uma mesa no Etxebarri, um alento. O restaurante é o estandarte, mas não é o único asador que vale ter vindo ao mundo. A 30 quilômetros de San Sebastián, em Tolosa, a Casa Julián é um dos bastiões desse estilo de cozinha deliciosamente rústico. Já em Getaria, terra do estilista Cristóbal Balenciaga (aproveite para ver o excelente museu em sua homenagem), a 26 quilômetros, são imperdíveis o Elkano e o Iríbar.

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No menu, brilham o tradicional chuletón (colossal corte bovino de cima da costela), peixes como o rodaballo (pregado, em português) e o besugo (um dos peixes mais nobres do repertório espanhol), além de cogote de merluza (cabeça sem dentes e a parte superior do corpo da pescada), entre outras delícias do Mar Cantábrico.

Orgulho na Andaluzia

Para se fartar de um dos ingredientes mais nobres da gastronomia internacional, é preciso estar no extremo sul da Andaluzia na primavera. Em maio, cardumes de atum-vermelho (Thunnus thynnu) saem do Atlântico para desovar no Mediterrâneo, passando pelo Estreito de Gibraltar, que separa a Europa da África. Para o bem do sashimi nosso de cada dia, muitos acabam nas redes das almadrabas, uma arte de pesca sustentável (que só retém os animais adultos) criada pelos fenícios e usada até hoje em Conil de La Frontera, Barbate, Zahara de los Atunes e Tarifa, na província de Cádiz.

Na época da desova (e da pesca), essas cidadezinhas brancas à beira-mar são o melhor lugar do planeta para provar a iguaria a preços inimagináveis em outras partes – em 2017, um bichão de 212 quilos foi vendido por US$ 650 000 no mercado de Tóquio. Um dos ótimos endereços para encarar um menu degustação a cerca de € 30 é o La Azotea de la Mejorana, em Conil de la Frontera.

Restaurante Aponiente
O restaurante Aponiente, do “chef do mar” Ángel León (Divulgação/Divulgação)

Outro achado é o El Campero, em Barbate. Na mesma cidade fica a Gadira, uma das fábricas que se encarregam do ronqueo (corte em pedaços) e do processamento do atum de almadraba, em que é possível comprar iguarias como ovas secas e barriga de atum enlatada a preços camaradas. Apesar da fartura de atum por ali, o “chef do mar” Ángel León convoca toda a sua criatividade para achar outras formas de aproveitar o que o oceano pode pôr na mesa.

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Envolvido em pesquisas com a Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ele elabora caldos de plâncton (que brilham no escuro) e emulsões à base de olhos de peixe; fabrica embutidos com peixes descartados por barcos pesqueiros; e aproveita algas, esponjas e anêmonas em suas receitas. Sua genialidade, que desfila no menu degustação do restaurante Aponiente, num moinho do século 19 em Puerto de Santa María (a 47 quilômetros de Conil de la Frontera), acaba de levar a terceira estrela no Guia Michelin 2018.

O Atlântico também é indiretamente responsável pelo sabor do produto gastronômico mais emblemático da Espanha. As brisas oceânicas são fundamentais para criar o microclima da região de Sierra de Aracena y Picos de Aroche, na província de Huelva, onde fica Jabugo. A 660 metros de altitude, perto da fronteira com Portugal, a cidadezinha tem condições ideais para a produção do jamón de bellota, o pata negra. Para ser vendido como 100% ibérico e com o selo da denominação de origem Jabugo, cada animal de raça pura deve dispor de uma área de 1 a 2 hectares de dehesa, seu habitat natural, farto em azinheiros e sobreiros, árvores que produzem a tal bellota (fruto parecido com castanha).

A diversão glutona na região consiste em visitar as fábricas e degustar o produto. A mais famosa do pedaço é a Cinco Jotas, equipada com um pequeno museu, que mostra a odisseia de técnicas ancestrais e paciência que faz com que as pernas do porco se transformem em fatias vermelhas, brilhantes e translúcida que derretem na boca. O passeio guiado de 75 minutos pelas instalações custa € 15, com harmonização de presunto e vinho. Por € 60, o tour inclui uma volta pela dehesa, em que os bichinhos não se acanham em cafungar e lamber os pés dos “convidados”.

Cinco Jotas, Espanha
Jamón da fábrica Cinco Jotas (Divulgação/Divulgação)

Nos restaurantes da região, tudo aquilo que não vira presunto vai ao prato em cortes suínos que farão qualquer carnívoro rever o amor ao boi. Anote: pluma, secreto, presa, solomillo… De tão nobre, a carne do cerdo ibérico pode ser degustada malpassada ou até em carpaccio. E um bom lugar para isso é o restaurante Arrieros, a 20 quilômetros de Jabugo, na linda Linares de la Sierra.

Oito quilômetros adiante, Aracena é a cidadezinha mais bonita da serra. Além de bons restaurantes como o Essentia e o Montecruz – e inúmeras lojas de presunto e embutidos, tem a Gruta de las Maravilhas, caverna com estalactites, estalagmites e outras formações varadas por lagos cristalinos. Para rebater o sal no paladar, reserve um tiquinho de apetite para os quitutes da tradicionalíssima Confitería Rufino, adoçando a vida de Aracena desde 1875.

COME, DORME

Algo para picar com uma copita de jerez, por favor. Primeiro prato, ou simplesmente el primero. Vinho. Segundo. Sobremesa, de preferência embalada por uma tacinha de cava, o glorioso espumante nacional. E ai do garçom que não oferecer um chupito, shot de licor ou aguardente que antecede o café (em incontáveis variações) no dilatado ritual da refeição, como Diós manda.

Nada mais natural, portanto, que o horário comercial permita um intervalo de três horas no meio do dia, com tempo suficiente para um banquete (e uma subversiva bebidinha, mesmo em refeições de trabalho), antes da siesta – dormidinha que vem caindo em desuso, mas ainda é praticada por cerca de 38% dos espanhóis, segundo o jornal El País.

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