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Passione!

Itália barata: apartamento alugado a passos do Duomo, em Florença. Almoços a menos de € 20. Bate e volta a Siena, Lucca, Pisa, San Gemignano, Cortona.

Por Mari Campos
Atualizado em 2 jul 2021, 11h45 - Publicado em 8 set 2011, 15h48

A simplicidade é libertadora. Quando decidi passar um mês na região italiana da Toscana, eu tinha essas palavras da escritora americana Frances Mayes na cabeça. Antes de embarcar, acabei relendo o belo Sob o Sol da Toscana e soube também que a autora estava com um novo livro na praça, Every Day in Tuscany, em que continua a narrar suas descobertas nesse pedaço tão especial da Itália.

Em Sob o Sol da Toscana, Frances compra uma propriedade abandonada, chamada Bramasole, nas cercanias de Cortona, uma cidade que já existia na Antiguidade. Eu, sem grana, não tinha a menor condição de fazer isso. O que queria mesmo era viver o dolce farniente de uma das mais lindas regiões do mundo. Saborear, sem ir à falência, o melhor da culinária local, inebriar-me com os aromas dos mercados, os sons das ruas, a visão extática dos enormes campos dourados de feno, dos girassóis ad infinitum ao redor das estradas. E, claro, deixar-me estar em contemplação silenciosa das obras de arte espalhadas em todo canto – Florença, a capital da Toscana, é também a capital do Renascimento, afinal. Como Frances Mayes, eu queria viver entre essa gente capaz de fabricar o próprio azeite e que passa horas à mesa na companhia de amigos saboreando um delicioso e aromático vinho Brunello de Montalcino. Para usar as palavras da escritora, “a Itália me chamava”. E eu, que ansiava por essa simplicidade libertadora, não via a hora de colocar meus pés no país. Uma vez lá, a memória e muitas passagens de Sob o Sol da Toscana me acompanharam durante 32 dias.

A escada sobe três andares com gradil artesanal de ferro forjado, cujas curvas simétricas conferem um pouco de ritmo à subida. Meu orçamento era curto, e meu desejo de viver cada segundo dos 32 dias que teria na Toscana, intenso. Minha Cortona era a bela Florença; minha Bramasole, um predinho do século 16, o Brunelleschi – sim, o mesmo nome do artista renascentista -, onde aluguei um apartamento de um quarto, bem ajeitadinho, que descobri num site. O melhor: ficava a poucos passos do Duomo. Bella posizione e belo preço também: paguei cerca de € 30 por dia. E era para lá, antigo estúdio de pintores há séculos, que eu voltava feliz da vida no fim de cada giorno.

A Toscana atrai escritores e outros artistas desde muito antes de Frances Mayes. Tchaikovsky, Goethe e Stendhal, para citar apenas três, tiveram passagens cruciais por Florença. O caso de Stendhal é curioso. Em 1817, o escritor francês entrou na Basílica de Santa Croce, sentiu-se tonto, teve palpitações e quase desmaiou. A partir dali, quem quer que se expusesse a uma overdose de obras de arte e apresentasse os mesmos sintomas seria diagnosticado com a síndrome de Stendhal. Mas minha autora de cabeceira, ou melhor, de mochila, seguia sendo Frances. Não só minha. Em vários momentos topei com gente com o livro em praças, estações de trem, restaurantes.

É possível que os brasileiros venham à Toscana no embalo de algo bem mais popular, a novela Passione, de Silvio de Abreu, que estreia em maio, em que Tony Ramos será o camponês Totó. Os campos de girassóis da região vão ser mostrados exaustivamente, já que os 60 primeiros capítulos da novela que vai substituir Viver a Vida exibirão cenas gravadas na região. Abreu disse à VT que a Toscana “tem paisagens magníficas e é ainda uma tentação gastronômica”. E indicou um restaurante em Siena (veja no Onde é Melhor). Eu não encontrei nenhum global na Toscana – e na verdade nem pretendia. Queria era era viver o dia a dia dos florentinos e conhecer (ou rever) outras gemas próximas, como Siena e San Gemignano. Como fazia uma viagem barata, andei de trem e ônibus, transportes muito confortáveis na Itália e que não me custavam mais de € 20, em média, por dia.

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Estar plenamente acordada quando o céu fica de um coral riscado de rosa forte, echarpes de névoa flutuam pelo vale e os canários silvestres cantam. Nos lugares que amamos, viajar sem pressa é tudo o que se quer. Eu não tinha de limpar, consertar ou investir na minha Bramasole, mas também me sentia completamente em casa no Brunelleschi. Despertava todos os dias com o canto dos pássaros no terraço do vizinho (ritual que se repetia também nos fins de tarde) e durante o dia acompanhava o dobrar dos sinos do Duomo de hora em hora. Adorava acordar e sair a desbravar aquelas ruelas medievais, sentir o perfume das ervas e dos queijos misturados ao das flores nos mercados, contemplar cada escultura espalhada pela Piazza della Signoria ou escondida numa piazza menos famosa, deleitar-me com as obras de arte da Santa Croce ou com a tela O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, aquela em que a deusa do amor aparece sobre a concha, na Galleria degli Uffizi.

A vida diária é um prazer. “Buongiorno”, dizia, ainda que com seu jeito carrancudo, o vendedor da banca de jornal em frente ao meu apartamento. Era apenas uma única palavra, pronunciada daquele jeito duro dos italianos, mas contribuía para a sensação de lar, de viver naquele lugar. Da porta, o destino seguinte podia ser o Mercato San Lorenzo, com suas barraquinhas de bolsas ou os estandes de queijo pecorino; a Galleria dell’Accademia para admirar o Davi mais uma vez; ou atravessar a Ponte Vecchio em busca de um gelatto no outro lado do Rio Arno para então subir a ladeira até chegar à escadaria da Igreja de San Miniato al Monte para ver a cidade ainda mais do alto. Confesso que às vezes abandonava Florença, mas era uma traição ligeira. Pegava um trem para cidades que ficavam a no máximo duas horas dali, como Pisa, Lucca, Assis, Arezzo, Viareggio, Siena ou San Gemignano. Ao fim do dia, contudo, acabava sempre por voltar ao Brunelleschi.

As casas em tons ocre e pastel ainda formam uma curva ao longo do rio como se fossem uma aquarela de si mesmas. A Toscana viveu sua época de ouro entre os séculos 13 e 14, com o apogeu dos Médici. A família de banqueiros, políticos e religiosos dominou a vida política, social e cultural. Quatro Médici foram papas, Pio IV, Clemente VII, Leão X e Leão XI. Lorenzo de Médici, que também era poeta, foi o grande mecenas das humanidades no Renascimento e foi ali que se desenrolou um dos mais criativos períodos de toda a nossa história – de descobertas sobre o homem, o mundo e a natureza por meio das obras de gênios como Da Vinci, Giotto, Botticelli, Michelangelo e Brunelleschi. E cada uma de suas cidades guarda reminiscências desse período, numa identidade própria e incontestável. A natureza também foi pródiga com a Toscana. As tão peculiares colinas em sucessão são lindas de se ver da janela do trem ou do ônibus. Delas partem estradas sinuosas em caminhos que parecem sempre desembocar em algum vinhedo. Vez ou outra surge um vilarejo, verdadeiras aldeias de pedra, permeadas sempre de flores.

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E aquela Cortona, a verdadeira Cortona de Frances Mayes, lembra? São 80 quilômetros que a separam de Florença ou, traduzindo o percurso, basta uma hora de trem até Arezzo e então meia hora de ônibus até Cortona. A cidade continua igualzinha às descrições do livro: pequena, com a pracinha central regendo a vida diária. A vilinha, de pouco mais de 20 mil habitantes e cheia de ladeiras, palácios e igrejas medievais, é uma joia do tempo dos etruscos, povo que antecedeu os romanos. Aproveite para conhecer Arezzo, essa terra de antigos cavaleiros medievais, igrejas góticas, anfi-teatros romanos e fortalezas. Como fica em plena montanha voltada para o Rio Arno, por suas ruelas sinuosas passam vespas e caminhonetes com a mesma desenvoltura – algumas desembocam na Piazza Grande, em restauração já há algum tempo. Arezzo ganhou fama depois que o ator e diretor italiano Roberto Benigni filmou ali grande parte de seu premiado A Vida É Bela.

A torre ainda está inclinada, os turistas tiram fotos inclinados para um lado ou para outro diante dela. Num outro dia, resolvi misturar três cidades na mesma viagem: Pisa, Lucca e Viareggio. As conexões de trem são ótimas, com horários perfeitos, o que permite visitar as três em sequência. Eu tinha visto Pisa em 2002, às 5 e meia da tarde de um inverno, quando já era noite escura; vê-la às primeiras horas da manhã teve um gostinho diferente. Cheguei à Piazza dei Miracoli quando a cidade ainda despertava e aproveitei para entrar de novo na catedral e no batistério, onde o ingresso custa € 4 – preferi economizar os € 15 da subida na torre, que eu já conhecia. Dali saí a perambular pela beira do rio, xeretar o Mercato Centrale e fui embora quando os primeiros grupos de turista começavam a chegar. Menos de uma hora depois eu já pisava em Lucca e as boasvindas foram ainda com o dia ensolarado. A bela Piazza San Michele, lotada de restaurantes de qualidade duvidosa e lojinhas de suvenires inflacionadas, já foi palco de um antigo coliseu (o único vestígio é mesmo o formato). Para fechar o dia, fui a Viareggio, na bela região da Versília, a meia hora de Lucca. O lugar anda ganhando ares de Riviera nos últimos anos, com endinheirados atracando seus iates por ali. É a cidade onde Giacomo Puccini viveu 30 anos e por isso não é de estranhar que a música do autor das óperas Tosca e La Bohème esteja presente em todo o lugar, não só na casa-museu Puccini como na Ópera Municipal a céu aberto. Pela bela Promenade, à beira-mar, muitos jovens caminham no fim de tarde. Como a local Eloisa Taverni, que aproveitou para fazer publicidade gratuita de sua cidade enquanto nós duas curtíamos o pôr do sol. “Para mim, não há no mundo paraíso como este.”

Passeggiata: multidões que se comunicam, passeiam, fazem pequenas compras. Nas cidades menores, a sesta é uma tradição – na verdade, quase três horas em que tudo, tudo fecha. Quando reabrem, já está na hora da passeggiata. Foi assim em Assis, cidade onde nasceu São Francisco e, de quebra, surgiu a própria Ordem Franciscana. Eu já sabia que ali encontraria uma das basílicas mais lindas da Itália e de toda a Europa, e que guarda o túmulo de São Francisco. Mas não imaginava que o lugar fosse muito além disso. É comum que cidades de peregrinação religiosa não sejam um primor arquitetônico, mas com Assis é diferente. Seu formato peculiar, subindo a encosta de montanhas, se desenrola em muitos tons de marrom em ruelas perdidas aqui e ali, cada qual com sua história. Você pode entrar numa viela despretensiosa e minúscula próxima à basílica e terminar no exato local em que São Francisco nasceu, indicado por uma singela capelinha. Ou dar de cara com frades jogando uma pelada no cair da tarde, como eu vi. Ou com uma turba de turistas japoneses se movendo de um lado a outro enquanto padres estão em plena oração. Assis é, como dizem os italianos, “veramente bellissima”.

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Viajar pela Itália, e pela Toscana em especial, é um grande convite a romper regras. Eu, mesmo sendo organizada, decidia minhas viagens de ímpeto, ao sabor do dia – nos dias de chuva forte, ficava mesmo é em Florença, fuçando suas feiras livres, aquele tipo de local em que você pode comprar comida, se vestir, decorar a casa e arrumar o jardim, tudo no mesmo lugar. “Não troco Florença por nenhuma outra cidade do mundo”, me contou Alexandre Dias, de Maceió, que trabalha como vendedor de lembrancinhas no Mercato del Porcellino. Como centenas de outros brasileiros, imigrou para a Itália há alguns anos, se apaixonou por Florença e só volta ao Brasil nas férias.

Aqui estão eles, o tempo todo, ocupados em viver. O gran finale das minhas viagens de bate e volta ficou com as maravilhosas Siena e San Gemignano. Siena foi, assim como Florença, o maior centro de produção artística da Renascença – e eram cidades que se dividam no apoio aos guelfos (ligados ao papado) e gibelinos (partidários do Império). Siena ainda transpira Idade Média em muitos locais, como a bela Piazza del Campo, palco do Palio, tradicional corrida de cavalos que acontece todos os anos em julho e agosto e que envolve todos os bairros da cidade, chamados ali de contradas. Do alto dos 102 metros da Torre del Mangia (uma das mais altas da Itália), a gente vê não só toda a cidade como as bandeiras das 17 contradas que disputam o Palio. Dali encarei mais uma hora de trem até chegar a San Gemignano, um encanto de lugar. Logo vi as 14 torres medievais construídas por famílias rivais e que são o maior postal da cidade. Elas despontam no skyline e uma brincadeira é contá-las uma a uma – claro que, sob o efeito de alguns cálices de vernaccia, o delicioso vinho branco típico local, a empreitada tende a ficar um pouco mais difícil. Depois do almoço rumei à Piazza della Cisterna para ver se os sorvetes da Gelateria di Piazza merecem mesmo os prêmios de melhores do mundo, como já receberam de instituições europeias. Provei o sorvete de frutti di bosco – frutas vermelhas com pedacinhos de amora e framboesa -, e o baccio, que é igualzinho ao bombom. Mas não os achei estupendos. Nessa guerra contemporânea, fico com os gibelinos, digo, com Florença, com os sorvetes do Perche’ no!

Minha torta della nonna está pronta. Dos grandes prazeres de uma viagem à Toscana, sem dúvida comer bem está entre os principais. Não exatamente a alta gastronomia dos restaurantes mais renomados e estrelados que cobram fortunas pelos pratos, mas o do menu do dia das pequenas cantinas escondidas, guardadas como segredo pelos moradores. Na Trattoria Ponte Vecchio um bom almoço preparado pelos próprios donos, com o vinho da casa, não custa mais de € 20 por pessoa – ali eu fiz algumas das melhores refeições de toda a viagem. Peça a bruschetta, a lasanha e o tiramisu e seja feliz.

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E, claro, a casa mia, o Brunelleschi, em que uma belíssima refeição que eu mesma preparava, pura simplicidade italiana regada a Chianti ou Montalcino, não passava nunca dos € 10. Para isso, ia logo cedo ao Mercato Centrale, em Florença, para escolher o cardápio. Procurava pelos ingredientes mais frescos mas também me deixava guiar pelo perfume – e também pela simpatia dos vendedores. “Pomodori freschi, signorina!”, “Il vero peccorino!”, bradavam ao meu redor. Que prazer imenso era escolher a massa, voltar pra casa sentindo o perfume do manjericão e do funghi secchi. Em seguida, cortar os tomates e a mozzarella de búfala para a salada, beliscar o queijo pecorino, preparar o molho pesto, comer os morangos gigantes e muito doces. Depois, com o propósito de queimar calorias, muitos fins de tarde foram tomados por longas caminhadas lungarno (margeando o rio), que terminaram quase que invariavelmente numa tentadora gelatteria. Mais calorias, mas e daí?

É difícil mapear esse tipo de mudança na nossa própria reação a um lugar, mas as transformações são fáceis de perceber em outras pessoas. “Não duvide: a Toscana marca o ser humano irrevogavelmente”, me disse sem rodeios nem romancismos Trudy Zeilstra, uma holandesa que há 40 anos foi para Florença estudar italiano, se apaixonou, se casou, foi morar em Viareggio com a família e hoje não deixa a Toscana por nada nesse mundo. Assim como Frances Mayes, Trudy também estava coberta de razão. Eu deixava a Toscana, mas a Toscana, essa vai ser bem difícil de me deixar.

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