Os quarenta quilômetros que separam Santiago da Viña Santa Rita têm o efeito de uma viagem no tempo. Os vinhedos onde são cultivadas as uvas de uma das mais antigas bodegas do Chile estão espalhados pelo país, mas o processo de vinificação ainda acontece na propriedade fundada em 1880 no Valle del Maipu.
Caso você conheça um pouco de vinho é possível que já tenha associado a localidade com a sua mais famosa vinícola, a Concha y Toro. É bastante comum, aliás, que turistas conheçam a Viña Santa Rita e a Concha y Toro no mesmo passeio saindo de Santigo. Sugiro deixar um pouco de lado a garrafa de Casillero del Diablo e faço um convite para mergulhar fundo na Santa Rita, que guarda em seus domínios a mansão de seu fundador, convertida em um luxuoso hotel boutique, o Casa Real.
A construção, erguida há mais de um século por Domingo Fernández Concha, está cercada por um jardim centenário de 40 hectares que inspira longas caminhadas matinais (e já adianto que também pode ser percorrido por quem vai apenas passar o dia). Há diferentes opções de tours com degustação, realizados inclusive em português, além de um restaurante e do Museu Andino, com uma das mostras etnográficas mais importantes do país.
Esse relevante patrimônio histórico e cultural foi um dos motivos que fez a vinícola ser eleita a “Melhor Experiência de Enoturismo” do país na primeira edição do Premios Enoturismo Chile, realizada em 2022. No World’s Best Vineyards, que premia as melhores vinícolas para serem visitadas em todo o mundo, a Viña Santa Rita aparece em 72º lugar no ranking geral de 2023. Entre as vinícolas chilenas, ela ocupa a 8º posição.
HOTEL CASA REAL
Passar a noite em uma vinícola costuma ser um privilégio. Mas ficar hospedada no Hotel Casa Real me pareceu uma distinção ainda maior pela importância histórica e pelo nível de preservação do lugar. No processo de restauração que transformou-a em um hotel exclusivo, o casarão vermelho-terracota não só manteve as suas características arquitetônicas originais como continuou parecendo… uma residência. E ainda por cima das mais luxuosas.
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Cada cômodo continua desempenhando a sua função original — uma decisão acertada que hoje é o grande diferencial da propriedade. Com isso, minha sensação não foi a de ser uma hóspede em um hotel, mas uma convidada dos anfitriões, que na minha cabeça afeita a devaneios literários achava que poderiam chegar a qualquer momento.
De alguma forma fui apresentada a eles na sala de estar, onde estão pendurados os retratos a óleo representando os principais membros da família Fernández Concha que fundou a Viña Santa Rita no século 19. Eu estava cercada de muitos brocados, detalhes rococó e, acima da lareira, um espelho imenso de moldura dourada. É justamente esse espelho que estampa o rótulo do vinho Secret Reserve, o Sauvignon Blanc da casa.
O espaço é perfeito para tomar um vinho e conversar antes de seguir para a sala de jantar, que fica ao lado. Ali fui surpreendida por uma única e colossal mesa para vinte comensais onde é servido, à francesa e à luz de velas, um jantar digno da nobreza (incluído na estadia de quem optar pela pensão completa).
Depois, a pedida é seguir para a sala anexa, onde uma mesa de bilhar inspira uma partida ou duas antes de ir para o quarto. Preferi logo o quarto.
São 16 suítes e cada uma possui o nome de uma uva — a minha era a Pinot Noir. As metragens variam entre 30m² e 70m², todas bastante espaçosas e munidas de uma charmosa saleta com escrivaninha e sofá. Janelas altas emolduram ora o pátio interno, ora o jardim da propriedade. A decoração dos dormitórios é clássica, composta por móveis de madeira escura e cortinas e estofados com bonitas estampas florais.
A modernidade fica restrita aos banheiros, revestidos de um porcelanato único do chão às paredes. Ali também merecem destaque as amenities de marca própria — quem diria que os extratos da uva Cabernet Sauvignon, reciclados do processo de produção dos vinhos, deixariam a pele tão macia e cheirosa?
O dia amanheceu, o que pra mim significa o melhor momento quando estou viajando: a hora do café da manhã do hotel. A refeição foi mais informal que o jantar, a começar porque foi servido em outro salão onde estão espalhadas várias mesas menores. Pães, frios, frutas, cereais, leites e sucos ficam dispostos em uma mesa em sistema de buffet, enquanto café e ovos podem ser solicitados ao garçom.
Foi muito especial fazer a primeira refeição do dia naquele cômodo cercado por janelas que me permitiam espiar o pátio interno do casarão que guarda um bonito chafariz. A tranquilidade é tamanha e o cenário tão europeu que eu até esqueci que estava a quarenta minutos de Santiago.
À exceção da piscina e da academia modernas, que foram construídas em um espaço separado do casarão (ainda bem), tudo no Hotel Casa Real serve como amostra de como viviam os grandes produtores de vinho chilenos em priscas eras. A cereja do bolo é fazer, sem pressa nenhuma, uma caminhada matinal pelos jardins que cercam a construção.
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TOUR PELA SANTA RITA
A Viña Santa Rita oferece nada menos que dez tipos diferentes de tours, a maioria deles disponível em português. Eu recomendo fortemente que você faça algum passeio que inclua uma caminhada pelos jardins, como é o caso do Tour Premium. Assim, você consegue espiar a fachada imponente do Hotel Casa Real e ainda explorar os 40 hectares que compõem o seu “quintal”.
O paisagista Guillermo Renner está para o Chile assim como Carlos Thays está para Argentina e Burle Marx para o Brasil. Renner, que era francês, foi quem idealizou cartões-postais de Santiago como o Parque O’Higgins, o Parque Florestal, o Palacio Cousiño, a Plaza de Armas, o Cerro Santa Lucía e também os incríveis jardins da Viña Santa Rita, que misturam influências italianas e inglesas. Entre lagos habitados por patos e árvores centenárias, se escondem fontes, esculturas e até um banho romano ao ar livre.
Também fica ali uma preciosa capela de 1885, que durante o ano, geralmente a cada mudança de estação, sedia concertos de música clássica. A fachada é gótica, mas o interior, com arcos e cúpulas em forma de abóbodas, seguem o estilo românico. As paredes e o teto foram decorados com pinturas de santos feitas por Alfredo Valenzuela Puelma, um dos quatro artistas conhecidos como os “Grandes Mestres Chilenos”.
Quem nos conduziu nesse passeio foi a sommelière brasileira Maira Teixeira, que deu um show de conhecimento histórico antes de entrar no assunto que ela domina ainda mais. Enquanto ela explicava sobre o processo de produção da vinícola, passamos por diferentes adegas do século 19 construídas com cal, pedras, claras de ovo e que resistiram a uma série de terremotos. O tour se encerra com uma degustação de quatro rótulos da casa harmonizados com queijos, biscoitos, castanhas e frutas secas — adorei provar as diferentes combinações propostas por Maira.
Outra atividade divertida para se fazer na Viña Santa Rita é a Winemaker Experience, que é a chance de ser enóloga por um dia. Essa é a melhor forma de entender, na prática, como esses profissionais trabalham para criar um rótulo. Primeiro, fomos divididos em duas equipes. Depois, eu e os demais integrantes do meu grupo degustamos, tentamos adivinhar a uva e demos notas para seis vinhos “misteriosos”, sem nenhum tipo de identificação. Na sequência, discutimos quais deles gostaríamos de usar para criar o nosso blend, e em qual proporção, para só então colocar a mão na massa e começar a misturar os líquidos usando pipetas e tubos de ensaio.
Me senti em uma mistura de laboratório de química e prova do Masterchef, com direito à decisão final da Maira para definir qual dos dois grupos tinha feito o melhor vinho. O meu foi o vencedor, mas tenho que admitir que tive pouco a ver com isso. Minha participação foi muito mais na criação do rótulo que foi colado nas garrafas e que levamos para casa de lembrança.
Seja qual for o passeio que você escolher fazer na Viña Santa Rita, vale completar o dia com um almoço no Doña Paula (reservar é essencial). Outro lugar deslumbrante, o restaurante ocupa um casarão de estilo colonial e tem um lindo jardim interno. No menu, peixes, aves e carnes grelhadas, que podem ser acompanhadas de saladas, legumes ou purê de batata – pratos simples e bem feitos.
Antes de ir embora, vale ainda dar uma passada no Museu Andino. Em um prédio moderno estão cerca de três mil peças arqueológicas e etnográficas dos povos pré-colombianos que habitavam o Chile, que foram colecionadas durante anos pelo casal Ricardo Claro e María Luisa Vial de Claro, família que comprou a vinícola nos anos 1980 e modernizou o processo de vinificação. A exposição é riquíssima, com estatuetas, vasos de cerâmica, acessórios de metal e mapas antigos do Chile, alguns deles gigantescos. Mais uma prova de que, na Viña Santa Rita, a história é protagonista.
SERVIÇO
As diárias para duas pessoas no Hotel Casa Real custam a partir de R$ 1.336 com café da manhã e R$ 2.558 com pensão completa. Os tours partem de R$ 113, sendo que o Tour Premium custa R$ 255 e o Winemaker Experience, R$ 199. A entrada no Museu Andino é gratuita.
Saindo de Santiago, o acesso de carro à Viña Santa Rita é pelas autopistas 70 e 5. De transporte público, é preciso pegar a Linha 1 do metrô até a Estação Los Héroes, de onde parte o ônibus número 5010 em direção a Buin. Em Buin ficam táxis chamados de “colectivo”, que fazem um único trajeto definido até a vinícola: a viagem custa 20 mil pesos chilenos (cerca de R$ 114) para até quatro passageiros (eles ficam à disposição de terça-feira a sábado, das 8h às 18h).
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